O meu Fusca 1971 completou 1 ano! Como assim? Vou explicar,
mas preciso voltar quase três décadas. No início da década de 1990, um vizinho comprou
um lindo Maverick azul. Fiquei encantado com o design agressivo e com o ronco
assustador do modelo. Era um autêntico carro de vilão de filme americano.
Porém, na década de 1990, um carro fabricado na década de 1970 era considerado
velho, não antigo. Mas de todos os carros da vila onde cresci, era o Maverick
que fazia os meus olhos brilharem.
Pausa para uma queixa: quase 30 anos depois, até hoje não
andei em um Maverick. Nem o vizinho e nem o seu filho, que é um grande amigo,
me deram essa alegria.
Continuando... Saí da infância, passei pela adolescência e
cheguei à fase adulta ainda apaixonado pelo Maverick azul. Em 2003, o meu
vizinho ganhou de um de seus filhos outro Maverick, completamente original, o
que não era o caso do outro. Então, ele resolveu vender o tão cobiçado Maverick
azul. Na época, a cultura do antigomobilismo com carros da década de 1970 ainda
engatinhava, o que fez com o valor pedido fosse muito baixo. Coincidentemente,
naquela ocasião, aos 19 anos de idade, eu compraria o meu primeiro carro. A ideia inicial era comprar um carro 0km
básico ou um semi-novo com alguns acessórios. Mas quando fiquei sabendo que o
Maverick estava à venda, mudei completamente os planos: compraria um carro de 5
anos de uso para o dia a dia e sobraria a grana para comprar o Maverick. Mesmo
sendo com o meu dinheiro, consultei minha família. É claro que todo mundo achou
loucura. Um dos argumentos era que eu só tinha uma vaga na garagem de casa.
Eles venceram, comprei um carro novo e desisti do Maverick. Logo depois, o
carro dos meus sonhos foi vendido. Nesses últimos 15 anos, o Maverick passou a
ser um dos carros da década de 1970 mais cobiçados pelos antigomobilistas. Se
eu o tivesse comprado em 2003, hoje, ele valeria pelo menos 10 vezes mais do
que teria pagado na época. Esse é um dos maiores arrependimentos da minha vida.
Depois disso, quando pensava em ter um carro antigo, só
cogitava um Maverick. Nos anos seguintes, tive alguns carros novos ou
semi-novos. Porém, em 2014, o meu melhor amigo comprou um Fusca, modelo que é
pra ele o que o Maverick é pra mim. Comecei a ir com eles a encontros de carros
antigos, o que resgatou duas lembranças da minha infância: as histórias do
Fusca laranjinha, o primeiro carro do meu pai, e o manual do proprietário do
Fusca verde folha 1970 do meu padrinho, que foi uma das primeiras leituras da
minha vida. Por causa de um problema de
visão, meu pai teve que parar de dirigir antes da minha vinda ao mundo. Meu
padrinho também já não tinha mais o seu besouro, mas nunca soube o motivo para
ter guardado o manual. Como na época, já não era mais possível comprar um bom
Maverick por menos de R$ 40 mil (atualmente um exemplar do modelo com alto
índice de originalidade e conservação já está perto dos R$ 200 mil), resolvi
comprar num Fusca como meu hobby. Continuaria tendo um carro moderno, mas teria
um antigo para acompanhar o meu melhor amigo nas exposições.
Após algumas semanas de procura em sites de venda, achei um
1971 vermelho cereja, único dono, com manual do proprietário, nota fiscal de fábrica e alto
índice de originalidade. Era um verdadeiro tesouro. Comprei sem pensar duas
vezes. O carro era um achado, no entanto, precisava de uma restauração total,
pois só havia sido pintado uma vez em 43 anos e todo o interior era original de
fábrica (bancos, forros e tecidos).
No dia seguinte à compra, já o levei para a
oficina do Chicão, meu lanterneiro de confiança. A previsão era que ficaria
pronto em dois meses. Porém, Chicão teve grandes problemas de saúde
relacionados à diabetes e ele não deixava nenhum funcionário mexer no meu
carro. Era um serviço dele. Após 2 anos de muitas desculpas e prazos não
cumpridos, Chicão morreu. O carro estava completamente desmontado em um canto
da oficina. Cheguei a pensar em desistir do projeto e perder os quase R$ 7 mil reais
investidos até então, que representavam a compra do carro e o sinal dos
serviços de lanternagem e pintura. Mas não tive coragem, pois o histórico do
carro era raríssimo. Não encontraria outro igual tão fácil. Em julho de 2016,
tirei o carro da oficina do saudoso Chicão e levei para uma a 100 metros da
minha casa.
Na nova oficina, os trabalhos de lanternagem e pintura duraram 5
meses. Novamente, a vaga na garagem voltou a ser um empecilho. Precisava ter o
Fusca por perto para providenciar o resto dos serviços que faltavam (capotaria,
montagem, elétrica, mecânica...).
Então tomei uma decisão radical: vendi o meu
carro moderno, que chegava a ficar até um mês sem uso, pois sou bem atendido
pelo transporte publico no trajeto casa x trabalho. Abri mão de ar condicionado,
direção hidráulica, vidro elétrico, trava elétrica, air bag, piloto automático
e outros itens de conforto.
A meta era deixar o Fusca exatamente como tivesse acabado de
sair da linha de produção. Foi uma verdadeira torneira aberta de tempo e
dinheiro. Sempre faltava algum detalhe. Comprei peças pelo Mercado Livre de
quase todos os estados da federação. Além disso, cheguei a parar dentro de uma das
favelas mais perigosas do Rio atrás de um botão do painel. Com a ajuda de
vídeos do YouTube, restaurei em casa algumas peças de acabamento. Quando eu não
estava trabalhando, estava na garagem mexendo no Fusca. Não sei como os meus dedos
não caíram com a quantidade de produtos químicos que eu utilizava para tentar
tirar as manchas de tinta e graxa das unhas.
Em outubro de 2017, finalmente, ele estava do jeito que eu queria.
O investimento foi de pelo menos 30% a mais do seu valor de mercado após a
restauração. Deixou de ser um hobby e virou um casamento, para nunca pensar em
separação.
Nesses últimos doze meses, juntos, escrevemos 6.500 quilômetros de
histórias, viajamos para outro estado e fizemos ótimas amizades. Todo o prazer
em dirigir que eu havia perdido, recuperei com intensidade. Aprendi o que era a
tal “Fuscaterapia” que o meu melhor amigo falava. Quando o dia não está legal,
basta sair pra dar uma volta pela cidade que volto revigorado pra casa. Aos
finais de semana, quando a noite está bonita, costumo sair para comer um
cachorro-quente na Praia de São Francisco, em Niterói, a 43 quilômetros da
minha casa. Na Ponte Rio-Niterói, me sinto num túnel do tempo que me leva
direto para a década de 1970.
Outro ponto positivo foi que me reciclei como motorista, pois
a condução é totalmente diferente. Pra início de conversa, ele não tem
retrovisor do lado direito. Ironicamente, esses doze meses também representam o
maior período sem me envolver em um acidente de trânsito, desde o meu primeiro
carro. Quem me conhece, sabe que o meu histórico de acidentes é extenso. Se
juntar todos os Brats que tenho, a quantidade de folhas não ficará muito atrás
da Bíblia Sagrada. Algumas pessoas até achavam que era um luxo trocar de carro
a cada dois anos. Mas na verdade, elas não compreendiam que esse era o prazo
máximo que um veículo durava na minha mão.
É impressionante como o Fusca mexe com a memória afetiva das
pessoas, de todas as idades e classes sociais. Quase sempre que saio com ele,
alguém para ao lado para elogiar, perguntar o ano de fabricação ou brincar perguntando
por quanto eu venderia.
Só no último mês, dois casos muito bacanas aconteceram.
Estacionei rapidamente na porta de uma escola primária. Quando estava trancando
a porta, se aproximou uma menina, de cerca de 8 anos, acompanhada pela mãe. Ela
já chegou dizendo: “Mãe, é igual o que tenho em casa!”. Comecei a rir e a mãe
me explicou que a menina é apaixonada por Fuscas e tem uma miniatura no quarto.
Perguntei se ela já tinha entrado em um, a mãe respondeu que não. Então abri a
porta e a mãe fez verdadeiro um book dela dentro do carro. Na que hora estava
saindo, ela abraçou o volante como fosse um grande urso de pelúcia. Ganhei o
dia!
Após alguns dias, estacionei o carro numa área quase deserta
do shopping (antigomobilista tem pavor de parar perto de outros carros por
causa das portas assassinas). Quando estava indo embora, o shopping já estava
mais cheio, e ao lado do Fusca tinha um Renault Logan parado. Depois percebi
que além do carro, tinha um senhor em pé, com tom de contemplação. Quando abri
a porta, ele olhou pra mim e disse: “Tempo bom! Que saudade eu tenho desse carrinho!”.
Batemos um papo por alguns minutos (algumas crianças até me comovem, mas idosos
são o meu ponto fraco). Só não conversamos mais porque a esposa dele estava
dentro do Logan esperando o fim dos saudosismos para ir embora. O Fusca é uma
verdadeira máquina de arrancar sorrisos! Todo mundo tem uma história pra contar
envolvendo este modelo da VW.
O meu Fusca foi utilizado nas gravações da nova versão do filme "O Beijo no Asfalto", do Murilo Benício. A estreia dele nas telefonas foi ao lado de Fernanda Montenegro, Lázaro Ramos e Stenio Garcia. Nada mau para um senhor que quase foi aposentado compulsoriamente.
Mas o que me deixou feliz de verdade, foi ele ter sido usado nas fotos do casamento dos meus afilhados Alyne e Yuri.
Mas não foram só vitórias. Como ele ficou praticamente 3 anos
parado, alguns problemas mecânicos foram surgindo conforme foi voltando a
rodar. O pior de todos foi quando a roda traseira esquerda se soltou dentro do
túnel Noel Rosa. Isso mesmo, no Noel Rosa, o túnel mais assustador do Rio de
Janeiro. Outro problema que me deu muita dor de cabeça foi o entupimento da
linha de combustível. Quando eu pisava fundo no acelerador, o carburador
tentava puxar mais combustível, só que não chegava a quantidade suficiente, aí o
carro começava a engasgar até morrer. Mas meu carma com túneis ainda não havia
acabado. Por causa desse problema, enguicei no túnel da Covanca, na Linha
Amarela e no Túnel Marcello Alencar. Troquei várias peças até descobrir que
bastava limpar o canal por onde passava a gasolina. A última vez que ele me
deixou na mão, foi em junho, quando estava indo passar um fim de semana em
Visconde de Mauá. Tinha acabado de conseguir um posto para abastecer, pois foi
no dia que acabou a greve dos caminhoneiros. Saí do posto e parei num sinal, acionei
a embreagem e o pedal foi até o final, sem engatar a marcha. O disco de
embreagem tinha ido pro espaço. No fim das contas, um amigo antigomobilista me
ofereceu um de seus carros, o que salvou o meu fim de semana.
Depois da conclusão da restauração, ficou faltando apenas uma
coisa: um nome! Como ele foi fabricado em 1971, ano do nascimento do meu maior
ídolo no automobilismo, o meu Fusca passou a ser chamado de Jacques Villeneuve,
ou apenas Villeneuve para os mais íntimos.
O grande problema é que após o primeiro carro antigo, é
difícil saber a hora de parar. Daqui a alguns dias, fica pronto o Nelson
Piquet, um Chevette 1987, com o raro interior marrom tabaco e apenas 80 mil
quilômetros rodados, comprado por mim há dois meses. Como ele ainda estava com a
pintura original, levei para dar um banho de tinta.
A grande pergunta que me faço novamente é: onde vou guardá-lo? Se
tiver uma vaga sobrando aí na sua casa, me avisa!